Por Assessoria de Comunicação da Terra de Direitos
A retomada do julgamento da tese do “marco temporal” pelo Supremo Tribunal Federal (STF) no próximo dia 7 de junho tem forte impacto sobre os direitos territoriais dos povos indígenas, dentre eles do Povo Avá-Guarani da Terra Indígena (TI) Guasu Guavirá, localizada nos municípios de Terra Roxa e Guaíra, oeste do Paraná. Paralisado desde 2021 pelo pedido de vista do ministro Alexandre de Moraes e com um voto favorável à tese e um contrário, o julgamento pelo Supremo é decisivo para sedimentar o entendimento constitucional acerca do direito dos povos indígenas sobre as terras que ocupam, entre eles de cerca de 3 mil indígenas Avá-Guarani, distribuídos em 14 aldeias nos dois municípios.
Expulsos dos seus territórios com a construção do reservatório da Usina Hidrelétrica de Itaipu e pela expansão agrícola na década de 1940, os Avá-Guarani empreenderam um movimento de retorno ao território em 2004 – ou seja, posterior à promulgação da Constituição Federal. O processo de demarcação data de 2009, no entanto, uma Ação Civil Pública (ACP) movida pelo município de Guaíra no ano de 2020, e que tramita no Tribunal Regional Federal da 4ª Região (TRF4), impede que demarcação seja retomada. Até o momento foi elaborada a declaração do Território Indígena e o Relatório Circunstanciado de Identificação e Delimitação (RCID). Ainda que a Fundação Nacional dos Povos Indígenas (Funai) tenha suspendido em abril os efeitos da Portaria 418/2020 que tinha anulado o processo de demarcação, a Procuradoria Federal Especializada que atua junto à Funai avalia que, em razão da Ação Civil, novas movimentações para andamento do processo demarcatório só serão definidas com o julgamento pelo Supremo.
Embora o julgamento pelo STF possa parecer estar distante do cotidiano das aldeias, o interesse e mobilização em defesa da aprovação da tese do marco temporal tem articulada incidência de atores locais de Guaíra. A Organização Nacional de Garantia ao Direito de Propriedade (Ongdip), entidade de representação dos interesses dos proprietários rurais do Oeste do Paraná contra a demarcação de territórios indígenas e atuação da Funai, é autora de um dos 150 pedidos de amici curiae no julgamento da tese do marco temporal. Com sede na principal avenida de Guaíra, a entidade argumenta que a aprovação da tese do marco temporal pelo STF será o principal elemento de pacificação das relações fundiárias brasileiras. Veja levantamento realizado pela Terra de Direitos e Conselho Indígena Tapajós Arapiuns (Cita) sobre as teses jurídicas presentes nos pedidos de amici.
“Quando a gente fala que nosso futuro está em jogo, que nossa existência está ameaçada, quando a gente ouve que aqueles que tem o poder na mão querem aprovar o marco temporal e somente aqueles que estavam na data de 05 de outubro de 1988 que terão direito ao território ancestral [argumento central da tese], com isso ao mesmo tempo que estão tentando apagar nossa história eles estão tentando apagar tudo o que fizeram contra o nosso povo”, destaca a liderança Paulina Kunha Takua Rokavy Ponhy, resgatando a ação de expulsão que sofreram e ainda buscam resistir.
E não são apenas as tentativas pelo Legislativo ou Judiciário de implementar a tese do marco temporal que afetam os direitos territoriais do Povo Avá-Guarani. Cercado pelo plantio de monoculturas – em especial soja e milho – os relatos de sintomas por intoxicação aguda ou crônica dos indígenas e contaminação do solo e das águas por agrotóxicos são frequentes nas aldeias. Com isso, a permanência nos territórios tem sido dura.
“Sempre tem essas doenças como resfriados, dor de cabeça, diarreia, e outros e isso acontece nestes períodos em que os agricultores passem veneno nas lavouras. Não é só a gente que sofre com isso, mas animais também, plantas, a água e até mesmo nossos remédios naturais e sementes tradicionais são contaminadas. Estamos vivendo em meio a lavouras e não tem como evitar isso. Dependemos dos nossos pequenos espaços territoriais, já são pequenos e ainda sofrem o impacto do agronegócio”, enfatiza a liderança da aldeia Tekoha Y’Hovy (PR) e da Comissão Guarani Yvyrupá (CGY), Ilson Soares Karai Okaju.
De acordo com levantamento realizado pela Comissão, com exceção de três aldeias localizadas na área urbana, todas as demais aldeias Avá-Guarani estão ao lado dos plantios. E em alguns casos a distância entre as monoculturas e as casas dos indígenas e áreas de circulação é menor do que dois metros – o que viola a Portaria 129/2023, que determina distância mínima de 50 metros de mananciais de captação de água, núcleos populacionais, escolas, entre outros, para aplicação terrestre de agrotóxicos. Baseado nos dados do Censo Agropecuário de 2017, o estudo aponta que dos 661 estabelecimentos de Guaíra, 509 declararam utilizar agrotóxicos, enquanto 144 declararam não utilizar.
Em Terra Roxa o cenário permanece igualmente grave, dos 1.209 estabelecimentos, 921 utilizaram agrotóxicos e 281 declararam não utilizar. Com liberação recorde de agrotóxicos nos últimos anos e tendência de crescimento de aplicação de agrotóxicos no país – já apontado no último Censo, uma atualização do Censo deve, na avaliação de especialistas, apontar cifras maiores de uso de agrotóxicos nos últimos anos.
O levantamento aponta ainda que mais de 60% da Guasu Guavirá está dominada pelo agronegócio, enquanto o Povo Avá-Guarani resiste em 1,3% da área, com roças tradicionais. Os roçados e quintais – pequenas ilhas de plantio de alimentos e remédios naturais – também ficam intensamente expostos à contaminação por agrotóxicos, como apontou Ilson. Com a deriva dos agrotóxicos e contaminação do lençol freático, os mananciais e animais são afetados. Nem mesmo a construção de parreiral na divisa entre a monocultura e as aldeias consegue impedir o contato e exposição dos indígenas aos agrotóxicos.
Arma química
Uma forte preocupação dos Avá-Guarani é a pulverização intencional de agrotóxicos sobre as aldeias, roçados, animais ou água utilizada pelos indígenas. A integrante da Campanha Permanente contra os Agrotóxicos e Pela Vida, Fran Paula, destaca que a prática de uso de agrotóxicos como arma química é recorrente no país e objetiva expulsar os povos tradicionais de seus territórios ou gerar um cenário insustentável de sobrevivência na área.
“Os territórios indígenas, quilombolas, de povos e comunidades tradicionais, assentamentos da reforma agrária tem se tornado zonas de sacrifício com o avanço do agronegócio, dos monocultivos sobre estes territórios, com a intensa utilização de agrotóxicos pela pulverização área ou terrestre que tem colocado a vida destas populações em risco”, reforça. Ela resgata o caso emblemático de uso do agrotóxico como arma química contra o Povo Guyra Kambi’y, na região de Dourados, no Mato Grosso do Sul. A aldeia, composta por cerca de 150 indígenas, é vizinha de uma lavoura de soja, de distância de menos de 15 metros. Em 2015 uma aeronave pulverizou a área de residência dos indígenas.
“O caso foi denunciado ao Ministério Público Federal para tomada de medidas cabíveis, mas não é caso isolado. No Brasil há várias situações como essa devido o avanço do agronegócio, demostrando que o agro além se ser um problema de saúde pública é também violador de direitos humanos destas comunidades, que tem seus modos de vida impactados e estão suas vidas e sobrevivência correndo riscos constantemente”, complementa.
Formação para realização de denúncia
No final do mês de março um conjunto de organizações e universidade realizou uma oficina de orientação para realização de denúncia sobre os agrotóxicos. Um dos desafios, aponta a docente do curso de Ciências Biológicas da Universidade Estadual do Oeste do Paraná (Unioeste), Ana Teresa Guimarães, é estabelecer uma relação direta entre a exposição de agrotóxicos e manifestação de sintomas em casos de contaminação crônica. “Ao observarem o uso dos agrotóxicos e, logo na sequência, começaram a ter tosse, alergia, diarreia e entre outros sintomas, isso pode estar associado ao uso dos agrotóxicos no entorno das aldeias. Eles precisam unir os fatos”. A associação entre a causa e impactos é fundamental para organização e registro de provas e acionamento de órgãos.
“A Universidade tem conhecimento de casos, sempre chegaram relatos de contaminação e intoxicação por agrotóxicos, indicando esta problemática não enfrentada pelo Estado. Tem grande parcela de subnotificação. Há também a dificuldade de identificar casos de contaminação quando não é exposição muito grande e acarretam e danos imediatos”, destaca o professor de geografia da Unioste, Djoni Roos. Em conjunto com Ana Teresa e mais pesquisadores, a Unioste está desenvolvendo um projeto de extensão com os Avá-Guarani para fazer diagnóstico do meio ambiente e de como está a saúde dos indígenas pela exposição aos agrotóxicos.
Na formação a Terra de Direitos destacou que os danos causados por intoxicação ou contaminação por agrotóxicos pode ter responsabilização tripla: administrativa, civil e criminal. Os agentes violadores podem ser obrigados a reparar os danos, seja via pagamento de multas, suspensão de atividades, prestação de serviços à comunidade como custeio de programas e de projetos ambientais, até mesmo dever de indenização às vítimas ou pena de detenção ou reclusão.
A responsabilização é essencial para também evitar a ocorrência de novas contaminações. “As medidas de reparação e não repetição são necessárias para garantir que as empresas e agentes violadores sejam devidamente responsabilizados e não repitam práticas violentadoras de direitos. A medida de reparação visa reparar o dano ou restituir a situação anterior ao dano, dentro do que for possível”, destaca a assessora da Terra de Direitos, Jaqueline Andrade. As mudanças na legislação é um exemplo de medida para evitar a repetição. Ela relata que também podem ser consideradas medidas de caráter simbólico, para garantia de memória e voz dos grupos afetados pela contaminação.
A atividade é uma construção conjunta da Campanha Permanente contra os Agrotóxicos e Pela Vida, Terra de Direitos, Unioeste, Comissão Guarani Yvyrupá, Centro de Trabalho Indigenista, Centro de Apoio e Promoção da Agroecologia.
Próximos passos
Após a oficina foi requerido, através de ofícios, medidas de responsabilização, fiscalização e orientação para órgãos do estado do Paraná. Os documentos foram encaminhados para a Agência de Defesa Agropecuária do Paraná (Adapar), o Instituto Água e Terra (IAT), o Ministério Público do Estado do Paraná, o Ministério Público Federal, a Secretaria de Saúde do Estado do Paraná (Sesa), a Secretaria de Saúde Indígena (Sesai), o Conselho Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional (Consea) e Secretarias Municipais de Saúde.
A expectativa é que sejam tomadas todas as providências para fiscalização, controle e segurança no uso irregular de agrotóxicos. O acionamento dos orgãos também objetiva que garantir que os profissionais de saúde das Atenções Primária, Secundária e Terciária e nos serviços de Emergência realizem o acolhimento, diagnóstico, tratamento, notificação e acompanhamento dos casos agudos e crônicos de intoxicação por agrotóxicos, de forma a assegurar o cumprimento da legislação, principalmente do acesso à saúde dos indígenas da Terra Indígena Tekoha Guasu Guavira, e da aldeia Ocoy da Terra Indígena Tekoha uasu Okoy Jakutinga.