Produção de alimentos através de sistemas agroflorestais (SAFs) é alternativa para atender demanda de soberania e segurança alimentar da população urbana.
Ter uma agrofloresta ou sistema agroflorestal (SAF) – sistema de produção que consorcia plantas alimentícias com espécies arbóreas, está longe de ser algo apenas feito no campo. Aliás, é cada dia mais comum encontrarmos nas cidades espaços sendo destinados para a produção de alimentos saudáveis e diversificados, para o consumo próprio ou até mesmo como fonte de renda.
Rozimeiry G. Bezerra Gaspar, doutora e professora de engenharia florestal e agronomia na Universidade Federal do Paraná (UFPR), em Curitiba, e coordenadora do Projeto de Extensão Horto Agroflorestal Sabores e Saberes desde 2010, tem realizado, com seus estudantes e comunidade, ações para potencializar a produção de alimentos na cidade. Um dos objetivos é garantir a soberania e segurança alimentar para a população urbana, além de possibilitar a inclusão da população em espaços acadêmicos.
Na entrevista abaixo, Rozimeiry aborda questões fundamentais sobre o papel da universidade na democratização da informação e ferramentas que possibilitem à comunidade acessar uma alimentação saudável através dos SAFs e da agroecologia, garantindo que pequenos espaços nas cidades sejam altamente produtivos tornando-se, assim, uma opção para combater a fome nos centros urbanos.
Rede Sementes da Agroecologia (ReSA) – Como entrou em contato com a agroecologia e a nutrição?
Rozimeiry G. Bezerra Gaspar– A minha origem é rural, aprendi desde criança com a minha mãe a cultivar e criar animais de forma sustentável, respeitando o meio ambiente. Como a propriedade da minha mãe era no Bioma Cerrado, e estarmos muito distante dos centros urbanos, tínhamos o cerrado como a nossa farmácia viva, com os conhecimentos tradicionais dela e o seu respeito com a natureza foi onde aprendi muito do que sei sobre agroecologia e alimentação saudável. E aqui na UFPR através do Projeto de Extensão Horto Agroflorestal Sabores e Saberes, em uma área de 600 metros quadrados no Campus do Botânico, estamos fomentando a agroecologia e troca de saberes locais e conhecimento científico.
Nesse projeto o objetivo é trazer a comunidade para dentro da universidade, ação que deveria ser mais rotineira. Buscamos dar espaço para as comunidades, dar empoderamento para essas pessoas, valorizando a troca do conhecimento popular tradicional e científico. Através dele, realizamos muitos cursos, encontros e oficinas de capacitação na área da agroecologia, desenvolvimento sustentável, e daí entram os sistemas agroflorestais (SAFs) e alimentação saudável.
No horto, trabalhamos com as plantas medicinais, frutíferas nativas e alimentícias não convencionais, chamadas PANCs, mas que conhecemos como plantas tradicionais. Lá, temos uma área de cultivo dessas espécies, onde realizávamos vários encontros com a comunidade até o início do ano passado, agora com a pandemia acabamos tendo que nos adaptar e esses eventos passaram a ser virtuais ou no sistema drive-thru para a doação de mudas e sementes para a comunidade interessada e também receber donativos de alimentos, roupas, brinquedos e material escolar para famílias vulneráveis. E com a pandemia vimos a necessidade de aumentar o incentivo virtualmente para que as pessoas fizessem o cultivo de seus alimentos, plantas medicinais e frutíferas como forma de terapia e também soberania alimentar, fazendo o uso do quintal, sacada, laje ou jardim de suas casas.
Também trabalhamos com o resgate e valorização das frutas nativas daqui do Paraná e ao lado desse viveiro de frutíferas, que fica na UFPR, temos uma área de agrofloresta urbana, cujo objetivo é trazer os estudantes e a comunidade para realizar atividades práticas de agroecologia, trabalhando com troca de experiências e vivências. Nessa área utilizamos muitas espécies tradicionais e sementes crioulas, objetivando a conservação e também a divisão desses materiais com as pessoas interessadas em cultivar em suas casas e propriedades. Fazemos mutirões para os cultivos, manutenção e colheita das espécies plantadas. Nessa área, as espécies colhidas o seu principal objetivo não é servir de alimento, mas aumentar a quantidade de sementes e mudas para multiplicar e dividir com a comunidade para terem material de qualidade para plantar e cultivar nos seus vasos, hortas, quintais, jardins e áreas rurais.
ReSA – Qual a conexão entre os SAFs urbanos e a agricultura urbana? Tem como fazer SAF na cidade? Como fazer?
Rozimeiry – No início se pensava em usar as plantas apenas em sacadas, apartamentos, quintais e jardins, agora nós fazemos agrofloresta urbana. As pessoas têm entendido que em qualquer tamanho de área na cidade é possível cultivar alimentos. Posso muito bem ter um jardim agroflorestal com beleza, mas que todas as plantas eu possa comer ou usar para fins medicinais, como, por exemplo, a rosa que pode ser consumida como chá, geléia, salada, etc.
Foi com esse objetivo que criamos a agrofloresta urbana, para que as pessoas vejam que podem cultivar seu alimento na cidade, com isso, se atende a demanda de soberania e segurança alimentar, de produzir alimentos diversificados e saudáveis.
Podemos pensar na agricultura urbana sendo cultivando somente hortaliças de espécies com ciclos de um mês, seis meses. Já no caso dos SAFs, para a produção de alimentos na cidade, eu tenho que planejar a inclusão de pelo menos um componente arbóreo de modo que ele não atrapalhe futuros cultivos, no caso de construção ou o próprio crescimento das espécies de cultura agrícola. O manejo correto das espécies é imprescindível para permitir a entrada de luz, chuva, ciclagem de nutrientes e que as espécies sejam companheiras se beneficiando com o multicultivo na mesma área.
Pensando no planejamento, é preciso verificar que espécies a pessoa gostaria de cultivar, como as plantas alimentícias, medicinais, madeireiras, frutas ou flores. É preciso verificar a necessidade que se tem e por quanto tempo essa área estará disponível para plantio.
ReSA – Qual a importância dos sistemas agroflorestais em áreas de maior vulnerabilidade social, e como eles fortalecem as organizações dos bairros periféricos como, por exemplo, as associações e cooperativas?
Rosimery – É fundamental que na hora que se pense nos locais de planejamento de implantação dos sistemas agroflorestais, olhemos essas áreas de uma forma que as pessoas que serão beneficiadas consigam ter autossuficiência. E não é só a autossuficiência alimentar, é a elevação da autoestima, para que elas não precisem receber uma doação, pois estão produzindo seu alimento e sintam orgulho disso.
Na hora que trabalhamos com comunidades em vulnerabilidade social e começamos a mostrar experiências positivas de outros locais, as pessoas começam a se animar e fazer muito melhor do que falamos. Um exemplo é na hora que fazemos os cursos de capacitação para as mulheres, é muito rica a percepção e a vivência de cada uma, o quanto sabem, como lidam com situações diversas que vivem ali. Isso acaba dando uma oxigenada e fortalecendo essas mulheres, esses bairros que estão participando.
Então, é fundamental que tenhamos esse discernimento do nosso papel enquanto professores, universidade, organizações de várias áreas, na vida dessas pessoas. Muitas vezes esses bairros, comunidades, só precisam de uma oportunidade, de conhecer um projeto e suas possibilidades. Esse empoderamento das pessoas, esse fortalecimento de vínculo, pode começar com o simples cultivo do alimento, com essa troca de conhecimento entre comunidade e universidade.
ReSA – Quais são os fatores que limitam o desenvolvimento de sistemas agroflorestais na cidade e como a sociedade civil pode se organizar com a universidade para fortalecer as ações existentes?
Rozimeiry – O principal fator é o desconhecimento e com ele vem o preconceito, muita gente pensa em uma agrofloresta cheia de mato, porque tem árvores ali, juntará mosquitos, ratos, baratas. Precisamos desmistificar isso e a melhor forma é divulgar técnicas que podem ser utilizadas de formas sustentáveis.
Acredito que a maior dificuldade seria isso, mostrar ser possível sim, realizar agricultura na cidade. Foi por isso que criamos esse sistema da agrofloresta urbana, justamente para as pessoas irem lá e entenderem que é possível cultivar hortaliças, banana, milho e muito mais na cidade, tudo de forma saudável e sustentável.
Então, é preciso difundir, ensinar, aprender, trocar e fortalecer esse conhecimento multidisciplinar e cultural. Não é porque se planeja a implantação de uma agrofloresta que a produção de alimentos em área urbana não dará certo, é preciso entender essa maneira mais complexa e biodiversa de cultivo. É preciso conhecer técnicas de como tornar o solo com mais vida e mais produtivo, de forma orgânica para conseguir suprir essas plantas nutricionalmente. Entender os arranjos com as espécies que devem ser cultivadas juntas para conseguirem aproveitar os diferentes estratos do solo, e exigências de luz e sombra. Em que período devemos plantar cada espécie, por quanto tempo cada uma fica na área, quais os manejos que cada espécie precisa para ter um bom desenvolvimento, qual a função de cada uma (adubadeira, sombra, fruto, sementes, folhas, etc.).
Felizmente essa visão de que é possível ter agrofloresta urbana com objetivo cênico, terapêutico, organização social, soberania alimentar, segurança alimentar, etc, já está sendo consenso em muitas cidades no Brasil e no exterior. E como professora o que mais desejo é que os meus estudantes entendam a importância desses exercícios práticos e integrados com a sociedade, o momento de aplicação do conhecimento teórico na prática e, ao mesmo tempo, aprender a ler a real necessidade da sociedade e em conjunto buscar formas de transformação social e pessoal. E é muito gratificante acolher e ter o acolhimento da sociedade para desenvolver parcerias e trabalhos em conjunto, estamos à disposição.
Estamos sempre disponíveis para receber a sociedade e trocar ideias e conhecimentos, é só entrar em contato conosco no Facebook e Instagram.
ReSA – O estudo “Efeitos da Pandemia na Alimentação e na Situação da Segurança Alimentar no Brasil”, coordenado pelo Grupo de Pesquisa Alimento para Justiça da Universidade Livre de Berlim, na Alemanha, em parceria com a Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), divulgado em abril de 2021, mostrou que mais de 59,4% dos domicílios brasileiros apresentaram algum grau de insegurança alimentar entre os meses de agosto e dezembro de 2020. Como essa questão da insegurança alimentar pode se agravar a partir do corte em políticas públicas que poderiam viabilizar a vida de agricultores do campo, a produção de alimentos, geração de renda, inclusive para quem mora nas cidades?
Rozimeiry – A pandemia é um fator muito grave que aumentou a desigualdade social, deixando muita gente sem renda. Além disso, temos perdido muito das políticas públicas que foram uma conquista árdua, resultado de muita luta. Tem muita gente que pensa que política pública é esmola. Como fazer com que as pessoas tenham sustentabilidade e autonomia sem incentivo ou suporte?
O Programa de Aquisição de Alimentos (PAA) e o Programa Nacional de Alimentação Escolar (PNAE) são exemplos desse momento de corte, principalmente no início da pandemia. Em muitas famílias, os filhos só tinham alimentação na escola, digo a melhor alimentação, proporcionados pelo PNAE. E no início da pandemia em muitos municípios foi suspenso, o que ocasionou perdas para os agricultores, mas depois foi possível a continuidade desse programa fazendo a doação de kit alimentício para as famílias. Precisamos de maiores investimentos nos programas PNAE e PAA, e mais políticas públicas de incentivo à agricultura familiar, que levará a valorização ainda maior da agricultura familiar responsável pela produção dos alimentos que chegam à mesa da população brasileira.
Contudo, como em toda dificuldade pode vir a solução dos problemas, com o isolamento social e impedimento de feiras livres, muitos agricultores passaram a fazer a venda direta para os consumidores através das redes sociais, ofertando cestas de alimentos, orgânicos, principalmente com entrega à domicílio, o que fortaleceu a relação produtor-consumidor.
Diante da situação do aumento da insegurança alimentar no Brasil, que é fato, precisamos sensibilizar as pessoas e mostrar que têm realmente cada dia mais gente passando fome, sem ter o que comer. Além do desemprego, estamos passando por um momento de inflação cada dia mais alta, que está comprometendo a vida da população, afetando principalmente a de baixa renda. Aumentou o desemprego, e reduziu o salário, sem contar o quanto o nosso alimento encareceu nesses últimos meses. É importante fortalecer a política de estoques públicos de alimentos para fortalecimento dos pequenos agricultores e garantir ao Estado regular o preço do mercado, justamente para que os alimentos básicos não sejam commodities.
Entrevista: Equipe de Comunicação da Rede Sementes de Agroecologia.
Fotos: Rozimeiry G. Bezerra Gaspar