Laércio Meirelles*
Rede Ecovida de Agroecologia. Se é uma Rede, é um espaço de conexão, de interação. No caso da Ecovida, entre diferentes trabalhos cujo foco é a Agroecologia. Quando falamos em REDE estamos nos referindo à imagem de uma rede de pesca ou de uma teia de aranha. Constituída de linhas e nós. Os nós são todos que participam. As linhas são as interações que ocorrem entre aqueles que participam.
A Rede Ecovida se articulou como tal em 1998, mas pode-se afirmar que ela existia antes mesmo de existir. Desde meados dos anos 80, em diferentes lugares do Sul do país, começaram a se desenhar novas formas de produção, processamento, circulação e consumo de alimentos. Produzindo sem o uso de agrotóxicos e adubos de alta solubilidade, em cumplicidade com a natureza. Processando de forma artesanal ou em pequena escala, sem aditivos ou conservantes, a partir principalmente da experiência das mulheres agricultoras. Criando circuitos de comercialização os mais curtos possíveis, aproximando produtor e consumidor e buscando dividir os ganhos de forma justa. Consumindo saúde e fazendo do consumo um ato de solidariedade com quem produz, processa e comercializa sob os princípios da Agroecologia.
A Ecovida surgiu como o espaço que propiciou e propicia que estas pessoas e organizações se encontrem e interajam. Como já foi dito, cada membro é um nó. E toda relação entre dois ou mais membros da Rede é uma linha que se estabelece. Se pudéssemos visualizar nos três estados do Sul as ações cotidianas da Rede, perceberíamos esta teia de aranha. Viva, se ampliando, se recriando quando necessário, estabelecendo novos fluxos (linhas) e incorporando novas células (nós) a cada momento.
Mas, que ações cotidianas são estas? Não creio ser possível descrever todas. Decidir o que plantar, preparar a terra, semear, cuidar. Colher, lavar, organizar, pesar, encaixotar vender. Capacitar-se, através de um curso, um seminário, um intercâmbio de experiências. Preparar um material didático, dar uma entrevista na rádio, ir falar com o prefeito sobre um novo projeto. Fazer uma palestra em uma escola, um sindicato ou uma comunidade. Organizar um feira, participar de uma reunião do seu grupo, do Núcleo ou da Rede. Trocar sementes, receitas ou materiais. Sim, definitivamente não há como descrever todas as atividades e inter-relações que se estabelecem no dia a dia. Repito, é uma teia viva, que se amplia e se renova quando necessário, que estabelece novos fluxos e incorpora novas células a cada momento.
Ao longo de seus dezoitos anos de existência, a Rede Ecovida foi agregando novos membros. Hoje são cerca de 4500 famílias agricultoras, organizadas em mais de 300 grupos; 30 ONGs de apoio à produção e consumo de produtos ecológicos; 20 cooperativas e associações de consumidores; 100 unidades de processamento. Não é demais repetir que toda esta gente reunida tem um propósito fundamental – produzir e consumir produtos ecológicos, livres de venenos e transgênicos. Essa é a forma que essas pessoas encontraram para contribuir na construção de um planeta mais equilibrado, ambiental e socialmente.
Durante sua trajetória, a Rede se empenhou em dar forma e fazer conhecida e reconhecida a certificação participativa. A certificação participativa consiste em demonstrar a qualidade ecológica (ou orgânica) dos produtos através da ativa participação dos envolvidos no ciclo de produção e consumo. Tem na revisão de pares e na política das porteiras abertas um elemento básico. Todos avaliam e avalizam todos, e as propriedades estão disponíveis para visitas a qualquer momento. Não é exagero afirmar que a Ecovida foi uma referência fundamental para que este método esteja previsto na legislação brasileira, e seja cada vez mais utilizado em diferentes partes do planeta.
Uma tarefa considerada primordial dentro da Rede é o estabelecimento de Feiras de Produtores Ecológicos/ecologistas. Uma estimativa conservadora, ainda que imprecisa, aponta para mais de 200 feiras nos três estados do Sul, que comercializam pelo menos 500 toneladas de produtos a cada semana. Outro mercado prioritário para a Rede são as compras institucionais, que permitem um acesso democrático aos produtos ecológicos. Hoje, mais de mil escolas se abastecem com produtos de membros da Rede Ecovida como parte do que oferecem aos seus alunos.
Falando do seu funcionamento, os membros da Rede Ecovida estão quase todos organizados em pequenos grupos, associações ou cooperativas e, obrigatoriamente, vinculados ao que denominamos Núcleo Regional. Estes Núcleos, que hoje chegam a 28, são os espaços onde a Rede ganha vida. São organizados e conformados por proximidade geográfica entre diferentes membros.
Cada grupo possui sua dinâmica própria de reuniões e os Núcleos possuem uma coordenação mínima e um calendário de encontros, que geralmente ocorrem a cada dois meses. Anualmente, ocorre uma Plenária Estadual de Núcleos, que reúne os núcleos dos estados separadamente, além de duas Plenárias de Núcleos, que reúnem representantes de todos os Núcleos. A cada dois anos, é organizado o Encontro Ampliado da Rede Ecovida, com cerca de 1500 participantes reunidos por três dias, trocando informações, debatendo temas prioritários sobre a agroecologia, conversando, dançando, comendo bem, celebrando conquistas, analisando conjunturas e projetando cenários. Nos Encontros Ampliados se escolhe a Coordenação Geral da Rede por aclamação, formada por 12 pessoas, sendo 4 de cada Estado. Esta coordenação se reúne a cada três meses.
Com esta dinâmica, a Rede Ecovida vem conseguindo cumprir sua tarefa de criar vínculos entre quem produz e quem consome de forma ecológica no Sul do país. E, também, de se conectar com outras redes com objetivos semelhantes, bem como dialogar com o Estado, em seus diferentes níveis, reforçando a necessidade e a oportunidade da promoção de políticas públicas de apoio e fomento à Agroecologia.
Vale ressaltar que uma premissa está presente em todo este desenho organizacional: nunca perder sua característica de Rede – horizontal, flexível, dinâmica, adaptável a novos contextos, com seus membros em constante intercambio, cada célula acumulando informações do todo.
Quase vinte anos de trabalho árduo de articulação, potencializando o que cada um faz no seu cotidiano, ainda não foi tempo suficiente para construir uma presença estatística mais significativa na produção e no mercado de alimentos. Redesenhar o que se denomina sistema agroalimentar não é simples. Produzir e distribuir alimentos para uma população de mais de duzentos milhões (ou sete bilhões?) não é definitivamente uma tarefa fácil. Grandes grupos de interesse se aproveitam do fantasma da fome, materializado no mundo para cerca de um bilhão de pessoas, para fomentar o medo, apontar dificuldades e se colocarem como portadores das soluções. Não faltam poderosos e muito bem feitos lobbies juntos aos tomadores de decisão. Tampouco faltam eficientes propagandas dirigidas à população.
A Agroecologia se propõe a ser o vaso comunicante entre a necessidade de produção de alimentos, sua distribuição justa e a preservação ambiental. Mas seus pressupostos ferem interesses de grandes corporações que, todos sabemos, atuam fortemente na produção e distribuição de alimentos. Desde fábricas de sementes a grandes cadeias de supermercados, estes conglomerados organizados antes e depois da porteira dominam boa parte dos processos de produção e consumo. E lucram muito com isto.
Assim, apesar do esforço da Rede Ecovida de Agroecologia e de milhares de famílias agricultoras que, para além da Ecovida, trabalham dentro dos princípios agroecológicos, o veneno, as grandes indústrias transformadoras e a distância entre produção e consumo seguem dominando o cenário. Isto não nos desanima. Se ainda estamos longe de sermos maioria, temos consciência de sermos um exemplo promissor e interessante. Para que se amplie, depende de uma decisão coletiva, da Sociedade e do Estado. Nós seguiremos fazendo nossa parte.
*Laércio Meirelles é Agrônomo, coordenador do Centro Ecológico, ONG que desde 1985 trabalha na formação e assessoria em Agricultura Ecológica. O Centro Ecológico é membro da Rede Ecovida de Agroecologia