O dia 29 de agosto é o Dia Nacional de Combate ao Fumo e, para marcar a data, reproduzimos aqui matéria do jornal O Globo, com participação do Centro de Apoio ao Pequeno Agricultor (Capa).
Texto: Flávia Milhorance
Fotos: Antonio Scorza
A 200 quilômetros ao Sul de Porto Alegre, no interior de São Lourenço do Sul (RS), as rodovias são cortadas por estradas de terra que levam a cenários bucólicos, onde pastagens são de um verde vivo, pés de pêssego estão floridos como cerejeiras, e vacas e ovelhas se confortam sob o sol do inverno. Se seguirmos pelos caminhos empoeirados, surgem grandes galpões de tijolos. São estufas que indicam que a atividade ali é o fumo. Aproximando-nos, encontramos famílias de agricultores que, em geral, aparentam mais idade do que têm. E contam história similar: depois de dias intensos de colheita, sofrem enjoo, vômito, dor de cabeça, tremor, fraqueza. O que, antes, acreditavam ser o desgaste do trabalho pesado, hoje sabem que é intoxicação por nicotina. Não é só o cigarro, alvo de bem-sucedido cerco nas últimas décadas, que faz mal, mas também o contato da pele do fumicultor com a folha molhada do tabaco.
A chamada doença do tabaco verde, já descrita em estudos científicos, ocorre principalmente no período da colheita, quando agricultores carregam nos braços as folhas úmidas, seja por suor, orvalho ou chuva. A nicotina é uma molécula solúvel, por isso a água aumenta sua absorção. As concentrações de cotinina (derivado formado após a entrada no corpo) nesses trabalhadores são altas. Um fumante tem níveis acima de 50 ng/ml. Testes de urina realizados pela Secretaria de Vigilância em Saúde do Ministério da Saúde mostraram que agricultores não fumantes com sintomas da doença tinham níveis entre 68 e 380 ng/ml. Se fumavam, os índices saltavam para 180 a 800 ng/ml. Os efeitos de longo prazo ainda não estão claros, mas, segundo o ministério, podem aparecer problemas como câncer, doença pulmonar obstrutiva crônica e cardiopatias.
— Sempre ajudei na plantação e, depois da colheita, ficava zonza. Via minha mãe, meu irmão, minha tia na mesma situação, com a cara pálida, vomitando. Ficava apavorada — conta Géssica Podewils, que hoje trabalha no Centro de Apoio ao Pequeno Agricultor (Capa), assistindo famílias que querem parar de plantar tabaco.
A jovem de 20 anos integra uma família da zona rural de São Lourenço do Sul (RS). São oito pessoas, todas agricultoras, incluindo a avó Zeli Maria. Só o pai, Ronei, não se queixou do desconforto. O Brasil é o maior exportador e o segundo maior produtor de tabaco do mundo, com 706 mil toneladas anuais — 90% das quais vêm do Sul, numa cultura espalhada por 756 municípios e a cargo de 160 mil famílias.
São cerca de dez indústrias, em geral transnacionais, nos três estados do Sul. Produzem cigarro ou enviam folhas ao exterior e implementaram um sistema baseado na agricultora familiar. Participam de todo o ciclo, com financiamento de insumos, assistência técnica e compra da safra.
A produção de tabaco no Sul remonta ao início do século XX. E, na década de 1990, as grandes empresa migraram de países do Norte para se estabelecer por aqui, onde encontraram clima e agricultores adequados e custos mais vantajosos.
O presidente do Sindicato Interestadual da Indústria do Tabaco (SindiTabaco), Iro Schünke alega que a intoxicação não ocorreria se os agricultores usassem equipamentos de proteção: quando soubemos da doença, há uns cinco anos, contratamos um especialista para desenvolver uma vestimenta de proteção. Depois, outra empresa constatou nela 98% de eficiência. Ela é oferecida a preço de custo. Está comprovado que quem a usa não tem problema.
Roupa de proteção
Um estudo da Universidade Federal de Pelotas (RS) publicado este ano na revista “American Journal of Industrial Medicine” contesta o que ele diz: “O uso de vestuário de proteção não garantiu efeito contra a doença (…) No Brasil, o controle de qualidade do vestuário de proteção é fraco. Depois de terem sido lavadas apenas algumas vezes, (as roupas) perdem sua eficácia”. Na família de Géssica, todos a usam. Mas a maioria das outras, não.
— A colheita é no verão, então não tem como aguentar aquela roupa debaixo de sol forte o dia todo — diz Lauro Leitzke. — A pressão cai, dá vômito, tontura. Toda vez é a mesma coisa. Mas fazer o quê, se a gente está endividado e tem que se sustentar?
O mesmo estudo também estimou a prevalência da doença em 6,6% entre os homens e 11,9% nas mulheres no Sul. Outra pesquisa do mesmo grupo publicada este ano na “NeuroToxicology” trata do risco de esses agricultores desenvolverem distúrbios psiquiátricos. Trabalhos anteriores associaram a intoxicação por agrotóxicos (comumente usados na produção de tabaco) a depressão, transtornos de humor e tentativas de suicídios. Agora os pesquisadores reforçam a relação, além de pregar que a intensa exposição à nicotina também traz prejuízos à saúde mental.
Írio Blank Harntwig plantava tabaco desde os 12 anos e parou há três, depois do diagnóstico de depressão, pressão alta e problemas cardíacos, assim como uma dívida de R$ 40 mil contraída com indústrias fumageiras. Tem 52 anos. Sua esposa, Flora, 51 anos, e seus dois filhos de 20 e poucos anos também trabalhavam na lavoura. Todos saíram. Sob lágrimas, Írio diz estar arrependido dos anos de plantio.
— Num dia de colheita, comecei a sentir uma dor forte, e o médico disse que era o coração. Eu não sabia que a nicotina fazia mal — diz Írio, hoje pedreiro e criador de ovelhas que já planta alimentos orgânicos. — Achávamos que era preciso usar agrotóxico. Vimos que é só cuidar da lavoura.
A quantidade de produtos químicos até caiu ao longo dos anos — de 5,5 quilos por hectare, em 1990, para 2,2 quilos em 2011, estimam pesquisas (ou 1,1 quilo, hoje, como diz o SindiTabaco). Mas, segundo estudo da Fiocruz, os herbicidas e fungicidas usados são “moderadamente” a “altamente” tóxicos e podem ser absorvidos pela pele, por ingestão ou inalação. A combinação entre nicotina e inseticidas preocupa, e a pesquisa alerta: “São comuns os casos e as tentativas de suicídio nas pequenas propriedades de cultivo do tabaco”.